top of page

4

ANCESTRALIDADE:

MULHERES E CONSTELAÇÕES

“A minha avó trançava o cabelo das minhas tias, minhas tias trançavam o cabelo das filhas, minha bisavó trançava o cabelo da minha avó. A gente precisa trançar e conversar sobre isso. Não adianta nada a pessoa chegar, sentar, trançar e sair. Não é isso. Ser trançadeira é militância. A gente tá aqui pra poder fazer a diferença. Eu costumo dizer pra todo mundo que vem na minha casa trançar que vai sair daqui com uma sementinha. A gente vai conversar sobre racismo, sobre a questão da autoestima da mulher negra. A gente vai conversar sobre os nossos avós, sobre o nosso povo que veio como escravo da África, como esse povo se perpetuou aqui, o que ele precisou passar pra poder continuar nessas terras. A gente vai conversar sobre tudo isso… trançando o cabelo, claro!” - Andreia Cardoso

ônibus e uma profusão de tons de verde nas montanhas ao longe. No ritmo da chuva que cai lá fora, dedos ágeis entrelaçam mechas de cabelo. É no alto do terceiro andar de um prédio cinza com modestos cinco andares que funciona um dos maiores salões especializados em tranças na cidade: o Trança Nagô.

 

A pouca distância dali ficam os trilhos de trem, o Mercadão de Madureira, o Shopping dos Peixinhos e até a quadra da Império Serrano, uma das escolas de samba mais tradicionais do Brasil. Mas é em frente das janelas do Trança Nagô que se encontra o imponente Viaduto Negrão de Lima, uma das muitas almas de Madureira. É que cada cantinho do bairro porta memórias vivas que fazem daquele um lugar de nostalgia e lembranças adocicadas. Madureira veio do mel. Ou melhor: do açúcar.

A

s gotas de chuva no vidro da janela formam constelações. Um olhar atento para pra ver o que acontece além das imagens refletidas na vidraça. Na direção daqueles olhos femininos há carros,

Feita de açúcar e mel

Quando os índios tupinambás nomearam a região como yrá-ýá, o subúrbio do Rio de Janeiro ainda era um sertão a ser desbravado. Yrá-yá vem do tupi e significa “lugar de onde brota o mel”. Na época, durante a colonização portuguesa no Brasil, vários povos indígenas foram escravizados e obrigados a trabalhar em engenhos de açúcar da região. Só que açúcar não era um produto conhecido pelos índios. Mas era doce feito mel.

 

Foi por volta do século 16 que os invasores europeus adaptaram a pronúncia e yrá-yá se tornou o “Irajá” de Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá. As terras da região foram desmembradas em fazendas menores e trocaram de dono diversas vezes, algumas delas por concessões reais, outras por herança familiar. Era por ali que ficava a Fazenda do Campinho, que, após algumas confusões judiciais e loteamentos, passou para as mãos de Lourenço Madureira, em 1851. Daí vem o nome atual, um pouco menos criativo que o autêntico “lugar de onde brota o mel”.

Se desejar, ative as legendas do vídeo.

Madureira é um bairro forte porque tem comércio. E onde tem o comércio livre tem a presença do preto porque é mais fácil de comercializar, não tem exigência de prefeitura, não tem exigência de alvará, de IPI. É vida de camelô. É assim que o negro sobrevive”

MARGARIDA SOUZA, TRANCISTA

O local possui cerca de

50.106

habitantes

Já se passaram

405 anos 

desde a fundação do bairro

O local possui cerca de

50.106

habitantes

Já se passaram

405 anos 

desde a fundação do bairro

18.937

é o número total de domicílios

18.937

é o número total de domicílios

MADUREIRA

EM NÚMEROS

O parque de Madureira é o  maior parque e a maior área verde da cidade

31 títulos

é a quantidade total de troféus de ouro que as duas escolas de samba de Madureira possuem

O bairro conta com 

6 estações

de transporte BRT 

O bairro conta com 

6 estações

de transporte BRT 

Os famosos Baile Charme reúnem cerca de 2 mil pessoas nos dias do evento, que ocorre no Viaduto Negrão de Lima

31 títulos

é a quantidade total de troféus de ouro que as duas escolas de samba de Madureira possuem

Fonte: Censo 2010

Fonte: Censo 2010

Fonte: Censo 2010

Fonte: Censo 2010

Fonte: G1

Fonte: G1

O parque de Madureira é o  maior parque e a maior área verde da cidade

Os famosos Baile Charme reúnem cerca de 2 mil pessoas nos dias do evento, que ocorre no Viaduto Negrão de Lima

Fonte: Estadão

Fonte: Estadão

A princípio as terras da região eram ocupadas, em sua maioria, por ex-escravos e seus descendentes, que vinham de fazendas do Vale do Paraíba (na região de Minas Gerais) ou do próprio interior do Rio de Janeiro. Segundo Silvia Fraiha e Tiza Lobo, autoras da coleção de livros “Bairros do Rio” (1998): “A vida, naquela época, era marcadamente rural, organizada em torno das festas religiosas, da música e da dança de origem africana, ainda que com alguma influência portuguesa”.

 

Anos se passaram e a fisionomia do bairro acompanhou o crescimento do Rio de Janeiro. Madureira foi deixando de ser a área rural e bucólica das canas-de-açúcar para abrigar trilhos da estrada de ferro e dos bondes. Ao mesmo tempo, cada vez mais famílias pobres não conseguiam arcar com os custos habitacionais do Centro recém remodelado pelo prefeito Pereira Passos e partiam para regiões mais baratas da cidade. As populações negras marginalizadas tinham encontrado um lugar para chamar de seu.

Por ser um bairro muito preto, Madureira tem uma questão estética muito forte. Lá você se sente à vontade pra ser quem você é. Quando eu cheguei aqui no Rio, pisei em Madureira e vi todo mundo trançado eu falei: ‘esse é o meu mundo, é aqui que eu quero estar’”

JULLYET SOUZA, TRANCISTA

Uma casa por aqui

“Se a cultura negra não morar aqui em Madureira, ela tem uma casa por aqui”, diz Fabio Alves, 31, proprietário do salão do prédio cinza, o Trança Nagô. Formado em Publicidade pela Universidade Estácio de Sá, Fabio explica que, além de Madureira ser uma referência cultural, também é um importante ponto de logística da cidade. “Daqui você vai pra qualquer lugar do Rio de Janeiro com um ou dois ônibus, no máximo”, afirma. “Tem duas linhas de trem, BRT, uma linha de metrô a 10 minutos de distância. O acesso é muito fácil”, declara o publicitário, completando que o fato do salão ser em Madureira é um dos responsáveis por seu sucesso e acessibilidade.

 

Ao refletir sobre o porquê de tantos salões étnicos e trancistas concentrarem-se em no bairro do charme e do samba, Fabio palpita: “No geral, essa é uma cultura consumida aqui, as pessoas que frequentam esse local que conhecem e sabem dela”. São nos locais de grande circulação de pessoas e comércio, próximos a mercados, lojas, galerias e ruas populares que a comunidade negra reproduz a sua existência.

Madureira é o berço cultural da população negra. [...] O comércio acabou se apropriando disso: os salões afro viram que lá tinha um público e que existia a possibilidade de um mercado promissor, já que todo mundo tem acesso a Madureira”

ANDREIA CARDOSO, TRANCISTA

“Falar em mercado de cabelos 100% humanos é falar de Caxias [município do Rio de Janeiro]. Mas quando se fala em cabelo sintético, que é também o mais acessível financeiramente, você fala de Madureira”, diz Marcos Silva, dono do Feirão dos Cabelos. O estabelecimento, que é o maior fornecedor de material para as trancistas da cidade, localiza-se na mesma quadra do salão Trança Nagô. Para o proprietário da loja, que também é conhecida como Feirão dos Brinquedos, o forte comércio de cabelo sintético em Madureira acabou influenciando a localização da área de trabalho das mulheres que trabalham com tranças. “Hoje existem muitas trancistas que estão bem próximas daqui, no entorno da loja, por causa dessa facilidade de vir buscar o cabelo pra fazer o penteado do cliente”, diz ele.

 

Marcos conta que a loja, que existe há 30 anos, a princípio vendia artigos sazonais e contava com uma boa variedade de brinquedos. É por isso que muitas mulheres, à procura de cabelos sintéticos para a preparação de tranças mais compridas, iam até o local em busca dos cabelos das bonecas, que, na época, eram feitos de um material chamado kanekalon. “Nós tínhamos uma clientela que usava o kanekalon porque não existia outra opção”, diz ele, contando que até hoje algumas pessoas chamam essa fibra japonesa de “cabelo de boneca” devido ao brilho do material – o que acaba dando um acabamento artificial ao penteado.

 

Segundo o empresário, a alta demanda dessas consumidoras fez com que o segmento de cabelos sintéticos fosse inserido na loja cinco anos após sua inauguração. “Foi quando vieram as novas texturas cada vez mais próximas do cabelo humano, criando ainda mais adeptos dessas técnicas de trança e alongamento”, acrescenta Marcos, lembrando que, nos últimos seis anos, houve um aumento de 400% na procura por fibras sintéticas no estabelecimento. Atualmente o Feirão dos Cabelos vende mais de 600 pacotes de cabelo artificial por mês.

Entrevista com Marcos Silva - Por Gabriela Isaias
00:0000:00

Se desejar, ative as legendas do vídeo.

Leticia Castro adora mudar o visual: "O importante é estar mudando de cabelo" - Foto: Gabriela Isaias

"Quando eu fico com a mesma cara eu me sinto bem mais ou menos", diz a trancista - Foto: Gabriela Isaias

Casulo protetor

Não é preciso muita coisa para começar a trançar: “Basta uma pregadeira, uma tesoura, lastex e dois clipes”, conta Genyce Rosa Pessanha, 58, que trança profissionalmente há mais de 16 anos. Mais conhecida como Professora Rosa, a trancista já teve mais de cinco mil alunos durante os seis anos em que deu aulas no Centro Social Lucinha, na Zona Oeste da cidade. No local, Rosa ensinava homens e mulheres de diferentes idades, mas ela afirma que muitas adolescentes apareciam por lá interessadas em desenvolver uma nova profissão. “Muitas das vezes uma menina de 15 anos já tá com um filho no braço, então ela vai aprender um trabalho que pode fazer dentro de casa enquanto olha a criança, na casa da colega, no pátio da escola”, diz a professora.

 

Segundo Rosa, ser trancista não requer muito conhecimento teórico, mas sim habilidade com as mãos e criatividade. “Na trança você vai se descobrindo, vai vendo o que dá pra fazer dentro da sua realidade e aí você vai buscando o seu talento”, diz, afirmando que nem só com cabelo sintético se faz uma trança comprida: lã, sisal, linha de crochê e até fita de cetim podem servir para compor um penteado. “Você vai vendo ao seu redor o que você consegue reproduzir na cabeça das pessoas, como uma nota musical, uma flor, letras, nomes, um coração... Você vai criando aquilo que você vê”, afirma.


Atualmente, Rosa é dona do salão Afroshow, que fica em um dos boxes de um centro comercial no bairro de Campo Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Junto à sua filha, Barbara Pessanha, 33, e à amiga e funcionária, Cristiane Pinheiro, 41, Rosa oferece várias técnicas de implantes de cabelo, como entrelaces e crochet braids. Mas ela garante que o item mais pedido por lá são as tranças; sejam elas rentes à raiz (nagô) ou soltas (estilo rastafári). A professora acredita que a alta procura deve-se ao fato de que cada vez mais mulheres abandonam a química capilar em busca de um estilo natural. Rosa explica que a trança é um penteado protetor: “Ela guarda o fio, tipo um casulo. Ele fica protegido lá dentro e vai crescendo de forma sadia. Quando você para de usar a trança o teu cabelo está virgem, tratado, pronto pra fazer o que você acha que deve ser feito nele”.

 

Fazer um trança, porém, é diferente de trançar. Segundo a professora: “Quando você escolhe ser trancista você tem que entender que vai encontrar cabelo cheiroso e cabelo não cheiroso; vai encontrar cabelo que não embaraça e cabelo que embaraça; cabelo limpo e cabelo sujo, com piolho e tudo”. Para ela, o trançar deve ser feito, acima de tudo, com carinho. “Todo mundo gosta de ser amado, de ser tocado com amor”, afirma Rosa, com um doce sorriso.

Clique na imagem acima para aproximá-la e ler o conteúdo com mais conforto

A trancista Caroline Elliot, durante trabalho no salão Trança Nagô - Foto: Gabriela Isaias

A magia do cafuné

Cafuné vem de kifune, da língua quimbundo. Segundo Luís da Câmara Cascudo, historiador e folclorista brasileiro, a prática angolana extremamente popular no Brasil consistia, originalmente, em uma “catação de piolhos fictícia”. Já o sociólogo francês Roger Bastide defende a ideia de que essa massagem, feita com a ponta dos dedos, tinha um objetivo diferente de encontrar lêndeas: era, assim como é atualmente, uma distração simplesmente carinhosa, de puro deleite.

 

O poder do toque é, antes de tudo, assunto mágico para muitos povos, ainda mais quando relacionado à cabeça. Tocar demoradamente os cabelos de alguém é um ato humano que se confunde com embalar para fazer dormir ou mesmo com carícias de amor. Por se localizar na parte mais elevada do corpo, a cabeça é considerada um instrumento de comunicação divina em muitas culturas. Ainda hoje, pentear, lavar, enfeitar ou trançar os cabelos são tarefas muitas vezes reservadas apenas a membros da família ou pessoas íntimas. Não são poucos os que acreditam que um fio em mãos inimigas possa ser usado para feitiços e rituais nocivos ao dono do cabelo.

 

O processo de preparação dos penteados pode durar horas ou dias e desempenha um papel importantíssimo na identidade das tribos africanas. Para Neli Gomes da Rocha, mestra em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná, era muito importante que as matriarcas de cada família fossem habilidosas com o manejo do cabelo e transmitissem esse conhecimento para suas filhas. Trançar não seria apenas um ritual, como também uma forma de arte que assume o caráter de dever social até os dias atuais. É “a trançadeira a pessoa que domina a técnica de manipulação dos crespos tanto em contexto pré-colonial, quanto na formação do Novo Mundo nas Américas”, afirma a socióloga, no artigo “Crespos: o Cabelo como Ícone da Identidade Negra” (2016), publicado na Revista NEP.

 

No contexto das sociedades africanas, pentear e trançar os cabelos são tarefas domésticas, tais como cozinhar, limpar a casa ou lavar roupa. A prática, também ensinada aos homens, mas praticada principalmente por mãos femininas, cria uma atmosfera de consolo entre mulheres, que se reúnem para trançar cabelos, compartilhar histórias e reviver memórias.

 

Pentes de plástico substituíram as escovas talhadas à mão e a maior parte dos ingredientes naturais (como palha, argila e conchas) deu lugar aos cabelos de fibras sintéticas. Seja no chão de casa ou nas cadeiras de um salão, na África ou em solo brasileiro, o costume de trançar foi reinterpretado ao longo dos séculos, traduzindo e legitimando novos momentos da história negra. É a união do sagrado ao cotidiano que, após centenas de anos, permanece no seio das famílias negras em diáspora.

A gente entende que não é qualquer pessoa que coloca a mão na cabeça da outra porque a cabeça é um canal. Aqui no salão a gente tem muito essa preocupação porque é uma troca de energia que rola durante o trançar. A trancista fica ali duas horas, três horas trocando energia com a cliente e fazendo uma coisa que a pessoa vai carregar com ela”

FABIO ALVES, EMPRESÁRIO

Se desejar, ative as legendas do vídeo.

Clique nas imagens acima para ampliá-las e ler suas legendas com maior conforto - Fotos: Gabriela Isaias

Artesãs sim, empresárias também

Antes de explicar porque acha que trancistas e cabeleireiros são profissões distintas, Letícia reflete. Olhando para cima, como quem procura as palavras exatas para dizer, a trancista de 25 anos lembra que pentear e trançar cabelos crespos são processos complicados e bastante demorados. Trabalhando com tranças há nove anos, Letícia Castro conta que, enquanto procedimentos comuns em salões de beleza costumam ser rápidos, o processo de trançar cabelos costuma demorar muito mais tempo. “A gente fica oito, nove, 10 horas juntas, trançando cabelo. Então é muito difícil a gente não ficar íntima uma da outra porque dá tempo de conversar sobre tudo: família, namorado, sonhos, faculdade…”

 

Moradora de Anchieta, ela conta que, apesar das duas atividades envolverem cabelo, há algumas particularidades em se dedicar apenas às tranças africanas. “Pela maioria das trancistas ser negra e atender pessoas negras, o significado muda totalmente”, diz Letícia. “Quando você tá ali trançando, você também tá escutando o que a sua cliente tá passando. Na maioria das vezes há todo um histórico pelo qual ela quer fazer trança: geralmente ela quer voltar ao cabelo natural, às suas raízes”, completa a trancista.

 

Trançar cabelos é uma experiência coletiva para muitos descendentes dos negros africanos espalhados pelo globo. “Depois que a pessoa sai da sua casa, na maioria das vezes ela não é mais uma cliente, a gente cria um laço. É muita conversa que a gente trocou pra esquecer e deixar de lado”, afirma Letícia, acrescentando que a consciência racial está entre um dos temas constantemente discutidos. “Fazer trança é uma mudança de vida: não é só um cabelo que a pessoa tá mudando, é uma mudança na personalidade, no posicionamento.”

 

Letícia também lembra que, apesar de compartilharem histórias, autoimagens, discursos raciais e traumas, trancistas são profissionais da beleza que retiram da atividade seu próprio sustento: “Conta você ver a autoestima da sua cliente renovada? Conta. Mas a realidade é que todo mundo tem conta pra pagar”, diz em tom sincero. A fala é parecida com a de Thaiene Moraes, 21, trancista de Bento Ribeiro. Segundo Thaiene, a trança não é apenas cultural e artística; ela é um objeto de comércio. “Eu não enxergo a trança apenas como arte porque a partir do momento que você cobra pra fazer passa a ser uma mercadoria”, diz a jovem, que utiliza as tranças como forma de complementar o salário que recebe trabalhando no Hospital Casa Evangélico.

 

É desse modo que salões étnicos, trancistas e outros propagadores das culturas africanas transmitem tradições de um continente distante, mas inserem-se, também, na indústria de consumo. Thaiene, porém, é categórica ao refletir sobre a carga energética transmitida no trançar. “Existem muitas questões espirituais que envolvem a cabeça de uma pessoa”, considera. Ela afirma que mexer nos cabelos de alguém pode transmitir peso ou leveza, citando, em seguida, alguns exemplos: “No candomblé, quando a pessoa ‘faz santo’, ela raspa a cabeça como se fosse uma purificação. Já nas igrejas evangélicas, se você parar pra prestar atenção, as orações são feitas com a imposição de mãos na cabeça e no coração”.

Clique na imagem acima para aproximá-la e ler o conteúdo com mais conforto

Certeza de quem se é

“Toda mulher preta quando olha pra uma trança consegue ver um pouco da sua história ali”, diz Tiara Mello, 31, enquanto usa o pente para riscar a raiz dos cabelos de uma cliente, formando uma divisão triangular. “Eu me lembro de ter lido um ditado africano uma vez que dizia que se uma mulher estiver triste ela deve trançar seus cabelos porque quando você trança é como se você trouxesse pra fora uma força de dentro que, às vezes, você nem sabe que tem”, completa, olhando fixamente para as divisões geometricamente perfeitas.

 

Até pouco mais de um ano atrás, Tiara utilizava as tranças como ganho extra. Foi quando uma demissão inesperada fez com que ela transformasse os penteados afro em renda principal. A trancista conta que, conforme ia se aprofundando no mundo das tranças, percebia cada vez mais que esse é um ato de amor. “Eu fui vendo que, quando as pessoas chegavam [para fazer o cabelo], às vezes elas não estavam muito bem, com problemas de baixa estima. Só que no trançar a gente ia conversando e aos poucos elas iam ficando melhores”, diz Tiara. “É como se fosse uma terapia tanto pra mim quanto pra elas, sabe? É como um encontro de energias positivas”, completa.

 

Bastante concentrada no que está fazendo, Tiara alterna algumas lembranças da família com discursos raciais absorvidos ao longo dos anos. Estudante de Direito na Universidade Estácio de Sá, ela explica que muitas pessoas – principalmente da cor branca – não compreendem muito bem a importância das tranças na vida de uma mulher negra, já que o estilo faz parte da infância de muitos afrodescendentes. A trancista conta que o penteado é comum na vida de várias crianças escuras que são muito novas para utilizar química no cabelo e consideradas “crespas demais” para usarem os fios completamente soltos.

 

Para Tiara, quando uma negra usa tranças ou assume o próprio cabelo crespo, mostra ao mundo que está certa do que é. “Com a trança a gente consegue se ver representado, é como se a gente tivesse transmitindo o que a gente tem de melhor e ajudando um irmão nosso a enxergar o que tem de melhor dentro dele”, afirma. A fala da trancista remete a um dos principais pensamentos do filósofo francês Tzvetan Todorov no livro “A Vida em Comum: Ensaio de Antropologia Geral” (1996), quando o autor afirma que "toda coexistência é um reconhecimento”.

Não tem outra palavra pra poder definir isso: é espiritual. É uma troca de energia, é a cumplicidade e a confiança que fazem você colocar a mão na cabeça de uma pessoa e ela se abrir pra você, contar da vida, falar suas histórias, seus medos, suas conquistas. O engraçado, com relação às tranças, é que as pessoas falam muito mais dos medos. É a vivência da mulher negra, da sociedade negra. A gente é uma corrente e cada uma de nós é um elo dessa corrente. Eu acho que isso é a nossa ancestralidade”

ANDREIA CARDOSO, TRANCISTA

Alguns dos materiais utilizados no salão Afroshow, em Campo Grande - Foto: Gabriela Isaias

Herdeiras da resistência

Tranças no cabelo, afago na cabeça. Receitas de comida, dialetos recordados. Música da alma, batuques de raiz, danças ancestrais. Crer nos orixás, amarrar um tecido na cabeça. Usar uma joia simbólica, buscar o belo. A herança africana flutua no som de cada palavra, caminha na direção de cada gesto, sobrevive em cada corpo negro que teima em resistir. Milênios de distância, reconstruções além-mar. Manter a memória viva é um ato revolucionário.

 

“Empoderar, pra mim, é mais que você ter um cabelo que te represente como negro”, diz Tiara, enquanto finaliza a última trança da cliente. “É você entender que o seu corpo é político e que quando se é negro, você é político o tempo todo: você já nasce militando e vai militar pra sempre”, afirma, enquanto sela a ponta da mecha recém trançada com o fogo de um isqueiro vermelho. “A gente tá sempre lutando contra o racismo, a gente tá sempre lutando pra ser respeitado”, acrescenta.

 

Tiara termina a trança. Recebe o dinheiro. Guarda no bolso. Se despede da moça, que vai embora com um sorriso satisfeito no rosto. Procura um espaço vazio no grande espelho do salão, a fim de ajeitar alguns fios de cabelo atrás da orelha. Em meio à profusão de vozes estridentes que riem, conversam e constantemente se sobressaem naquele espaço, ela retoma a reflexão: “Os penteados de raiz nos conectam com aquilo que nós somos”, diz. “E nós somos africanos em diáspora, somos produtos da África também. Nós somos as tataranetas das negras que eles não conseguiram escravizar”, afirma, tirando alguns fiapos de cabelo do seu avental amarelo.

 

Tiara olha pela janela. O fim de tarde virou noite, começou a chover nesse canto do mundo. Ela sente o vento, ouve as buzinas da rua engarrafada. As gotículas d’água tocam o vidro; são novas constelações. Como quem retorna do susto de uma distração inesperada, a trancista declara: “A trança não é só um penteado, é muito mais. Quando a gente trança a gente tá reproduzindo o que as nossas ancestrais fizeram, a gente tá resistindo”, conclui Tiara, que logo se corrige: “Na verdade a gente tá re-existindo”.

Se desejar, ative as legendas do vídeo.

Anterior

PARTE 3

Próximo

FONTES

bottom of page